Romulo Felippe
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Lá se vão 52 anos desde que o cachoeirense Francisco Mario Bahiense Miranda iniciou seus estudos no curso de Medicina da UFF. Antes disso, cursou o primário com a sua mãe, que era professora no vilarejo de Duas Barras. Passou posteriormente pela Escola do Comércio e o Liceu Muniz Freire – e, muito por influência do irmão, o doutor Vicente, acolheu o ofício médico. Depois de formado fez Neurologia no tradicionalíssimo Hospital dos Servidores do Estado, no Rio (o melhor do Brasil na época). Dez anos depois, já trabalhando em Cachoeiro, buscou na Universidade de Londres – através do National Hospital Queen Square – a reciclagem para implantar no Sul do Espírito Santo a Clínica Cachoeiro de Neurologia. Aos 70 anos, e conforme planejado por muito tempo, enfim doutor Francisco Mario anuncia a sua merecida aposentadoria. São 47 anos de Medicina. Nesse bate-papo exclusivo ele conta sobre a profissão, a vida e os planos para um futuro em família.
Romulo: Como foi o início do trabalho de neurologista em Cachoeiro?
Dr. Francisco Mario: Olha, no começo não foi fácil, mas eu sempre tive muita determinação. Foram muitas dificuldades, principalmente quanto a falta de exames específicos de neurologia para fazer diagnósticos. Mas a gente tocava como podia: o que a gente conseguia resolver, resolvia; o que não podia, transferia, pedia auxílio por telefone a colegas em grandes centros.
E a busca pela reciclagem fora do país, quatro décadas atrás?
Visto que eu me formei numa época pré tomografia e ressonância, comecei a sentir necessidade de atualização. Pensei em ir para o RJ, SP, RS, mas eu tinha uma possibilidade de ir para o exterior. Dois colegas tinham ido para a Inglaterra, e eu me interessei. Aí me candidatei e consegui uma vaga no National Hospital em Londres e lá passei um ano e meio fazendo uma pós-graduação.
Depois desse período nascia a CCN (Clínica Cachoeiro de Neurologia).
Eu trabalhava com um grupo diversificado em termos de especialidade e buscava uma proximidade com neuropediatra, neurocirurgião e psiquiatra, que são especialidades correlatas com a neurologia. Então entendi que tinha que bancar isso, já que não tinha em Cachoeiro. E a maneira que encontrei foi criar a clínica. Fizemos uma clínica bem estruturada para diagnóstico e tratamento de problemas relacionados ao sistema nervoso.
Fale um pouco sobre seu casamento, o nascimento dos seus filhos…
Minha esposa eu conheci ainda na época da residência. É o amor da minha vida! A Martha é dentista e estava fazendo uma pós-graduação no Rio naquela época. Ela sempre foi uma companheira. Mas a partir de uma certa fase, quando se aposentou, ela se associou a mim e entrou na parte administrativa da clínica. Tivemos três filhos fantásticos: uma que hoje é médica neuropediatra, uma que é engenheira e um que é arquiteto. Esse aspecto de família é fundamental, é algo que agora pretendo realmente dedicar tempo e assistência, compensando a eles por eu não ter tido uma oportunidade melhor por conta do trabalho.
Recordo da sua primeira entrevista na revista Viver! há quase 20 anos como golfista e você me disse a seguinte frase: que o golfe era sua válvula de escape. Há uma linha tênue entre esporte e medicina?
Sem dúvida, a prática de esportes relaxa. Principalmente o golfe, que para mim é um dos esportes mais interessantes para relaxar e concentrar. O golfe tem uma característica que exige concentração e pontaria, usando sua capacidade criativa. Nesses anos de prática eu acho que isso me fez muito bem, além de descarregar o estresse do dia a dia de trabalho. E agora mais recente, até a convite de um filho, comecei a correr. Não sei até onde vou conseguir chegar, mas acho importante manter a prática de esportes.
Qual foi a evolução que viu nessas quase cinco décadas tanto na neurologia, quanto na medicina em geral?
Se olhar a neurologia que eu fiz na faculdade comparando com a de hoje em termos de exames complementares é como se eu estivesse na idade média naquela época. A evolução foi muito grande, os exames neuroradiológicos que surgiram, ressonância, tomografia. As doenças continuam as mesmas, mas o diagnóstico e as opções de tratamento evoluíram muito. Como tudo tem vantagem e desvantagens, eu diria que o médico hoje tem menos proximidade e mais objetividade. Acho que acolhimento e proximidade com o paciente a gente não pode perder, e esse é um perigo que a medicina moderna está correndo: se aproximar cada vez mais da doença e se afastar um pouco do doente.
Como você prevê a neurologia daqui algumas décadas?
Na minha visão os especialistas vão agir dentro do cérebro, como já está começando a acontecer, resolvendo assim praticamente tudo em termos de prevenção, diagnóstico em fase inicial, medicamentos cada vez mais específicos como os anticorpos monoclonais, que são direcionados exatamente para o foco da doença. Vai chegar um momento que a precisão diagnóstica vai ser tamanha, e os tratamentos tão precisos, que a neurologia que é tão enigmática hoje, vai ter uma clareza que vai facilitar as condutas.
Dentre os milhares de atendimentos nesses 50 anos de medicina, algo o marcou mais profundamente?
O doente geralmente fica inseguro, então a primeira coisa que a pessoa quer é ser acolhida e bem tratada. Isso foi algo que aprendi e me marcou. Quando você acorda e vai para o consultório colocando em primeiro lugar os interesses do paciente, você acaba descobrindo as melhores maneiras de solucionar os problemas.
Qual a sua visão filosófica da vida hoje?
Acho a vida muito boa, sou muito grato por tudo o que eu consegui até hoje de aprendizado e estudo que a medicina me deu. Você como profissional deve sempre ir a fundo, pois quanto mais conhecimento tiver mais ajuda seus pacientes, e é importante ter um tempero de filosofia, de crença – não estou falando de religião, que também é importante, mas crença, que é algo que te coloca em condições plenas de você reunir o conhecimento e acolhimento para o bem dos pacientes.
Como é finalmente deixar a medicina e ter uma vida mais dedicada ao ‘Francisco’?
Primeiro, a sensação de dever cumprido. Acho que cumpri minha missão como médico, dentro dos meus limites. Fiz todos os diagnósticos de doenças complicadas que eu gostaria de ter feito, visitei os melhores centros de neurologia, conheci com proximidade os maiores especialistas da área. Mas a medicina tem um lado de responsabilidade, que prende a gente de certa forma. Então, com a aposentadoria estou me sentindo como que um passarinho que é solto da gaiola, aprendendo a voar novamente. É uma sensação de liberdade muito boa, embora a gente fique saudoso, pois criamos laços com os pacientes.
E quais são os planos de agora em diante?
Golfe, corrida, família, leitura, aprofundamento de crença. E um degrau de cada vez. O passado fica de experiência, vivendo o dia de hoje, estou alegre e satisfeito. Venho me preparando psicologicamente para parar a medicina, acho que chegou a minha hora, cumpri minha missão e agora é tocar minha vida com outros focos.
Qual a mensagem que você gostaria de passar para todos?
Agradecer, agradecer e agradecer. Acho que gratidão é um sentimento que temos que ter na mente, externar para valer mesmo. Sou grato a todos que sempre me apoiaram, a compreensão da esposa e filhos.